terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Entrevista: Kaza Vazia


O nosso entrevistado desse mês de fevereiro é Tales Bedeschi, integrante do coletivo Kaza Vazia. Bedeschi em um bate-papo informal nos falou de algumas histórias do coletivo e sobre como funciona a prática desse grupo que iniciou em meados de dezembro/2005. De lá para cá, ruas, calçadas, terrenos baldios, feiras e casas abandonadas foram as ambiências escolhidas para efetivar as propostas por meio da intervenção participativa e principalmente da colaboração, onde um grupo é formado, reuniões são marcadas e os projetos são efetivados.

KAZA 8 - GABRIEL COUPE, MARCONI MARQUES, OZEDA BAGALN.


N.M. Inicialmente me fala um pouco da Kaza Vazia, como ela funciona?

Tales - Todos os coletivos que a Kaza formou foram diferentes. Havia uma casa pra ocupar, uma proposta e uma galera se juntava. Daí a gente ocupava o espaço e fazia uma edição da Kaza. Acabava a ocupação ou a exposição (se é que tinha exposição) e as pessoas iam cada uma para seu lugar. Daí pensávamos em uma próxima e a gente se juntava de novo, mas, nem sempre, eram as mesmas pessoas. Na verdade, as pessoas mudavam muito. Esses coletivos foram sempre diferentes e, portanto, não dá pra dizer que a Kaza é um coletivo.

N.M. Mas, tinha uma costura que vocês seguravam, que era essa estória de vocês reunirem diferenças pra fazer o próximo evento...

Tales – É, exatamente. Tinha uma turma que continuava. Eu, Paulo Nazareth, Lucas Dupin, Aline Midori... Hoje o Paulo está na Guatemala (ou nos EUA); o Lucas está na margem das ações do grupo, terminando o Mestrado. O Marconi Marques que é um cara que a partir da Kaza 5 tem sido uma mão forte, assim como o Rafael Perpétuo, a Junia May... mas, eu acho que, desde o começo até essa última Kaza - que é a Kaza 11 -, só eu permaneci. Daí, eu não sei se na 12 eu estarei presente e o Paulo ou o Lucas estão dentro, sabe? Então, nunca se sabe.

Sofá Convite


N.M. Agora, havia sempre uma proposta que vinculava alguém de fora aos eventos do Kaza Vazia, pra palestrar, pra projetar vídeos...

Tales – Cada Kaza é um caso. A gente nunca soube lidar com isso no começo: qual era o melhor formato? Assim, as primeiras Kazas foram muito experimentais, testando coisas, refutando outras. Hoje, nós já temos mais ou menos uma noção, mas sem estarmos fechados à experimentação.

Na Kaza 1, a galera se juntou e fizemos vários encontros na casa. Cada um teve seu projeto individual e o executou em dois dias. Tivemos um dia de abertura. Nesse dia, chegaram outros artistas que gostaram muito da coisa e fizeram um grafite na parede, gerando essa interação espontânea. O que é importante falar nesse sentido é que o grupo vai sendo criado, as pessoas vão chegando, se reunindo, mas tem um período em que esse grupo se fecha. A partir daí, sei lá, depois de um mês de reuniões, não entra mais ninguém, porque precisamos de um tempo mínimo para a gente conseguir criar uma ligação consistente entre os artistas, um contexto comum, questões em comum que vão atravessar os trabalhos que vão ser produzidos. Então a gente fala assim: “não queremos que ninguém chegue com uma pintura debaixo do braço, que fez ano passado, e pendure aqui”, entende? Existe um contexto, um grupo e isso tem que ser observado pelos artistas.

N.M. E havia, assim, um período? De dois em dois meses vamos fazer a próxima Kaza?...

Tales – Não, não necessariamente. De repente, alguém avisava ao grupo, pelo email, que descobriu uma casa abandonada, por exemplo... “Massa, vamo lá conhecer!”, ou então surgia um convite de fora (uma instituição, outro artista, festival etc). Tinha de ter um ponto de partida pra aglutinar o pessoal de novo. Tiveram casas que a gente visitou, mas não “deram certo” e o grupo esvaziou novamente.

KAZA V


N.M. E assim... uma coisa que eu percebo que existe muito no blog de vocês, são os registros fotográficos, há uma preocupação de vocês para com relação aos registros fotográficos e videográficos do que ocorre nessas Kazas?

Tales – É, tem sim. A idéia é que o blog seja um diário de bordo da Kaza. Tudo que a galera faz a gente coloca. Uma visão minha sobre isso é que a Kaza tem dois públicos: o público que vai à Kaza e vê as coisas e o público que acompanha a Kaza na instância da internet e do blog. Assim, quando a gente foi para o Rio de Janeiro, a turma que freqüentava a Kaza não foi na Kaza, mas, acompanhava pelo blog, mandava mensagens e tal. É claro que são duas maneiras bem diferentes de ver, conhecer, sentir a Kaza.

N.M.As propostas de vocês parecem cambiar entre o cubo branco e as intervenções de rua, como vocês encaram esses extremos? Há um meio termo aí entre o que é intervenção urbana e o que é intervenção de galeria?

Tales - Cada edição da Kaza teve uma proposta. Por exemplo, na Kaza 5, ficou mais evidente esse termo “galeria de arte itinerante”. Foi uma das Kazas que a gente pôde morar no lugar. Moramos juntos durante duas semanas, tivemos tempo pra conversar. As noites eram muito ricas, porque todo mundo chegava do trabalho e produzia até a madrugada. A gente teve tempo e cuidado pra fazer uma galeria numa casa que já tinha as paredes pintadas de branco e tinha um ar de recolhimento. Ao contrário, em outras Kazas, os espaços ocupados eram extremamente precários: eram sujos, pessoas dormiam por lá, pernoitavam lá sem que a gente soubesse (Kazas 1, 2, 8...). Então essa Kaza 5, como foi mais protegida, pareceu mais aquele ambiente limpo e separado da galeria.

Acontece que esse formato da galeria começou a ser muito criticado por alguns integrantes da Kaza. Daí, a gente acabou querendo experimentar outras coisas, mas, essa mudança pra rua conta com o acaso também. Fomos convidados pra participar no Seminário Arte Hoje, lá de Ouro Preto.

Kaza 6 - Ouro Preto
 N.M. qual o ano?

Tales – Ai, rapaz... acho que foi... 2007... tem que confirmar, tem no blog.

Então eles disseram: “o que vocês querem que a gente arrume pra vocês?” A gente pediu uma grana e uma casa pra galera ficar e trabalhar. Eles não conseguiram arrumar um casarão pra gente e pediram pra gente fazer as ações na rua. Deram uma grana e ó: “arrumem um lugar pra vocês ficarem, uma república...” Foi um debate grande entre nós: “olha galera, os caras não estão dando exatamente as condições pedidas, pra gente ir”, sabe? “E aí, vamo nessa? Cês acham que os caras não tinham que dar uma condição melhor de trabalho pra gente fazer um bom trabalho, ou não?”

N.M. Entendí.

Tales  - E a gente acabou pensando, “não, vamo lá, vamo ver como é que vai ser”. E foi uma Kaza bem diferente. A gente se encontrava pouco na república. Muitos não viram todos os trabalhos que aconteceram, porque cada um era feito em um lugar bem diferente da cidade e a coisa foi na rua! Foi super rico, eu acho, pois todo mundo aprendeu muito. A gente estava acostumado a trabalhar dentro de uma casa, como foi na Kaza 5 e, então, muita gente viu o trabalho ser desafiado a uma nova condição.

Isso abriu um precedente e, na Kaza 7, reforçamos isso. Fomos pro Mercado Novo e depois pro Parque Municipal, que abriu um pouco esse conceito de, ao invés de pegar uma casa e transformar ela todinha e criar uma potência ali, a gente simplesmente chegava no Parque Municipal, por exemplo, e ocupava as frestas do lugar, sabe? Muito menos ambição, mais no pequeno, uma sugestão para ter uma porosidade maior com o ambiente, pra ver como...

N.M. menos interventivo, na verdade, né? Machucando menos o espaço, agregando as coisas que já existem ali...

Tales- é...é.

 N.M.   Como se dá a dinâmica interna dos participantes do Kaza, essa itinerância de pessoas no grupo gera problemas quanto às mudanças de formulações ou sentidos dos projetos? Por que geralmente as pessoas chegam com idéias muito diferentes, como é que vocês lidam com essas diferenças dentro do grupo?

 Tales – Olha bicho...  tudo tem seu preço, né? Inclusive, já ouvi de professores da Escola de Belas Artes, que gostam da Kaza e a acompanham, que a Kaza pagaria um preço muito alto por ser aberta. Acontece que a cada edição que termina, muda o grupo, muda o sentido da ocupação e isso muda muito a estrutura da Kaza. Então, ferramentas que a gente tinha afiado em uma edição, podem ser descartadas na seguinte.

Isso faz com que a gente tenha de despender uma energia grande pra “começar tudo de novo”. Mas os novos participantes, as pessoas que entram na Kaza Vazia, têm consciência de que estão entrando em um trem que já está em movimento. Então elas escutam mais... e a turma que já estava nas Kazas anteriores, vai dando um direcionamento, né? Acho que a Kaza tem projetos coletivos, uma coisa do grupo, pra definir uma estrutura conceitual daquela ocupação, e cada artista também tem a oportunidade de fazer seu trabalho individual. Então, de certa forma, isso contempla o artista que tem uma indagação muito forte. Ele pode usar ela no trabalho individual dele e não precisa convencer todo mundo a usá-la em um trabalho coletivo. Não tem de ser uma demanda de todo o grupo, sabe? Essa demanda pode ser canalizada no trabalho dele.


KAZA 6 - PROJETO KARTAS

 N.M. No Kaza Vazia 8 vcs moraram provisoriamente em um local. Como se deu o convívio com as pessoas que moravam ali, como foi esse convívio? Como é que se deu as negociações, as aproximações...?

Tales – Essa Kaza foi muito complexa. Foi a situação mais desafiadora que a gente já teve até então, porque era um casarão abandonado, mas já habitado por uma família. A casa chamou muito a atenção da gente, por que era cravada num dos bairros mais nobres de B.H.

N.M. Onde era?

Tales – Bairro Mangabeiras, perto da serra do Curral, na Avenida Bandeirantes. E a família que morava no casarão era uma família muito pobre, de ex-catadores de papel, que viviam da caridade das pessoas ali do bairro. Era um problema muito grande porque eles tinham três crianças - uma criança com problema mental, inclusive, que era trancafiada num quarto pra que ela não caísse das escadas sem corrimão e se machucasse. Ao mesmo tempo, as crianças não brincavam com os meninos da rua, do bairro e não tinham uma vida social, por que os vizinhos não permitiam que isso acontecesse. Então, tinha um ou outro vizinho, que dava água pra eles, permitia que eles enchessem os galões semanalmente, um que levava um dos meninos no médico, praticamente adotou o menino e tal.

A gente descobriu essa casa pelo varal de roupinhas simples que eles exibiam de frente pra Av. Bandeirantes. Então a gente foi conversar com eles e, a princípio, eles foram bastante solícitos. Falaram: “Não, essa casa aqui vocês podem entrar a hora que quiserem, não tem nenhum problema!” Mas, era uma coisa assim... dava a impressão também, que eles eram pessoas humildes que... pensavam assim: “Olha, a casa nem é nossa, mas a gente mora aqui. Então cara, se você quiser entrar, você pode entrar”, sabe? Então, a situação era: uma obra inacabada; o dono tinha ficado preso em dividas com o banco e não teve condições de continuar; essa família morava lá e protegia a casa de depredação; por outro lado, havia um outro cara que queria comprar a casa. A família tinha um contrato verbal com o dono que dizia que no dia que ele vendesse a casa, ele ia destinar uma parte do dinheiro pra construir um barraco para eles. O que na verdade não aconteceu de fato. Ficamos sabendo, por acaso, que o novo dono assumiu esse contrato, mas descumpriu o acordo e estava sendo processado por eles, com a ajuda de uns vizinhos.

Assim, a Kaza Vazia chegou e fez dois meses de visitas. A gente teve uma interação super bacana com os filhos e com a família mesmo. A gente levava coisas, desenhava, fazia pic-nics lá com eles e ia conhecendo eles aos poucos. Foi bem amistoso, na verdade, você via que uma parte se alimentava da outra.
N.M. Uma troca e tal.

Tales - É.

Com os meninos, em especial, foi bem legal, com um só na verdade, por que um era bebê, o outro ficava trancado. O Michael, que acompanhava a gente, conversava e tal. Na primeira reunião do mês de dezembro, todo o grupo que tava interessado na Kaza 8 (mas não estava vindo nas reuniões ainda) resolveu aparecer. Até então era um grupo pequeno que tava fazendo as visitas. Nessa reunião, muita gente ficou extremamente chocada com a situação. Uns brigaram, xingaram muito aquele grupo que tava construindo a coisa desde o começo. Teve uma moça que falou assim: “Cara, isso é um absurdo! Como é que vocês conseguem pensar em Arte vendo a miséria dessa família? É impossível isso que vocês estão querendo! Vocês são loucos, insensíveis!” Uma das respostas era que a gente queria trazer todo aquele conflito para o trabalho da Kaza. Queríamos vivenciá-lo, experienciá-lo. Queríamos questionar mesmo essa posição do artista, mas deixando claro que o nosso papel não era de assistentes sociais. A nossa estória ali passava por ver os limites da Arte ou os limites do artista. Até que ponto a gente não estava explorando a imagem deles e sem deixar nada em troca (a gente não queria fazer igual ao Sebastião Salgado, né)? Até que ponto, a gente pensava em contribuir e acabava atrapalhando? Mas, a gente queria ver até quando era possível essa convivência ser saudável, entende?

Qualquer intervenção na negociação de venda da casa era delicada. Mas casa acabou sendo vendida na hora que a gente foi se mudar pra lá e tivemos que procurar o novo dono e negociar com ele. Fomos na empresa do cara, nos apresentamos e mostramos a foto da casa dele na programação do festival 3º Verão Arte Contemporânea. Ele disse: “Olha, tudo bem, vocês podem manter o projeto. Mas é o seguinte: eu não quero que vocês limpem nada, nem reformem a casa, por que eu não quero que aquela família mude de idéia e resolva ficar ali. Eu quero que eles saiam o mais rápido possível, inclusive eu vou arrumar um barracão pra eles. Vocês podem ficar no quarto andar. Eu vou tirar eles de lá e vocês vão acabar morando com os meus pedreiros”. E foi isso que aconteceu. Ele levou os moradores pra um galpão, temporariamente, e a gente perdeu o contato com eles. E eles estavam felizes, eles queriam sair daquela casa, queriam um barraco perto de uma comunidade onde tivessem pessoas mais parecidas com eles.

N.M. São histórias como essa que dariam uma boa publicação, vocês já pararam pra pensar em publicações?

Tales – Com certeza, claro... a gente pensou em fazer publicações, mas, como a gente sempre começa tudo de novo, as vezes falta energia, sabe? Pra retomar...

N.M. Por que dispersa, por que parece ser muito fluído ao que parece, né?

Tales – Pois é, e a Kaza Vazia lida com duas forças que são as seguintes: a Kaza é itinerante e, portanto, não pode ter um grupo fixo porque isso é a natureza dela. Ao mesmo tempo, a gente vê a necessidade de ter um grupo fixo, pra cuidar de outras produções, de uma pós-produção, sabe? Só que a gente não tem como fazer isso se o grupo se dissipa. Então, até hoje a gente não tem uma publicação como um livro ou catálogo.






KAZA 11 - PALAVRAS AO VENTO, TALES BEDESCHI





N.M.  Algo que me veio em mente agora, como é que vocês resolvem problemas de convívio dentro das proposições? Vocês reúnem, vocês chamam pra mesa, vamos sentar, vamos ver o que está acontecendo... antipatias, diferenças... por que aparece né?

Tales – Com certeza! Ó, a Kaza se forma a partir de reuniões periódicas. Geralmente, numa Kaza a gente se reune todo final de semana na casa, ou local que a gente sabe que vai ocupar. Então a gente discute com os kazeiros, as pessoas falam das idéias que estão tendo. Na Kaza 5, aconteceu uma coisa que foi muito criticada por nós mesmos dias depois. Cada um colocou seu nome no espaço que queria fazer o trabalho, algo como: “esse espaço é meu, eu vou fazer meu trabalho e se você for trabalhar aqui do lado, pense que vai ter um outro trabalho aqui”. Mas mesmo antes e depois dessa experiência, sempre tentamos privilegiar os processos de criação compartilhada, os projetos coletivos.

E mesmo com as demarcações da Kaza 5, sempre tivemos conflitos. Por exemplo, um dos Kazeiros, o Douglas Pêgo tinha pintado um quarto todo de cor-de-rosa e aí, lá fora, em frente a janela do quarto dele, o Vicente Pessoa com Marconi Marques e Humberto Mundin, instalaram uma bonequinha, uma bailarina, em cima daqueles esquemas de ventiladores (aquela coisa prateada que gira sobre o telhado, sabe?). A bailarina rodava, como numa caixinha de música, e isso interferiu muito no trabalho do Douglas. O que fazer? Teve de ter uma negociação. Nesse caso, o Douglas acabou contrariado, por que o trabalho da bailarina permaneceu, era um outro trabalho muito legal e os dois tiveram de conviver juntos.

Tiveram muitos conflitos na Kaza 8, por exemplo. Depois de uma reunião, vários artistas de fora se recusaram a ir morar no casarão sujo e miserento. Houve, nesse momento, um conflito. Muita gente foi embora e não ficou uma coisa legal. Enquanto uns foram chamados de loucos, outros foram chamados de “fresquinhos”. Essa foi uma Kaza conflituosa desde o começo, mas não a única. Apesar de sempre se tentar resolver as coisas pelo diálogo, existem momentos em que não é possível. E o dissenso é importante pra Kaza Vazia.   
            http://kazavazia.blogspot.com/

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